terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Do Xeque Mate ao Cheque Ensino


Ainda antes de ser Ministro, na sua dourada época de comentador, malsinando que a escola pública é facilitista e o eduquês a sua linguagem, Nuno Crato, afirmou que o Ministério da Educação devia ser implodido. Hélas! Três anos volvidos e, realmente, restam pouco mais que escombros. As bombas que “Nuno, o pior do Crato” desembestou foram a drástica diminuição das dotações orçamentais, turmas sobrelotadas com mais de 30 alunos e vários níveis de ensino em simultâneo, encerramento de escolas, giga-agrupamentos, corte cego em auxiliares, despedimentos economicistas de professores, fim do Inglês obrigatório no primeiro ciclo, eliminação das Áreas de Projeto e Educação Cívica, aulas em contentores, diminuição de apoios sociais. Ufa. E só por exemplo. Fica óbvio aquilo que era evidente: o seu problema não era a suposta falta de rigor da escola. A escola pública é mesmo a arqui-inimiga do Ministro. E, assim, Crato passa a ser o inimigo público nº2.



A escola pública, tal e qual foi construída desde o 25 de Abril, foi o principal garante do nosso desenvolvimento. Fez-nos passar de 30% de analfabetismo em 1974 para uma percentagem residual e deu ao país a geração mais bem preparada de sempre. Mas Crato faz questão de regressar ao Estado Novo e a Tamagnini, Ministro da Instrução Pública de Salazar, que afirmava “não ser necessário muito dinheiro para a educação” já que  8%; eram ineducáveis; 15% estúpidos e 60% tinham uma inteligência média. O detentor da pasta em 2013 tem a mesma linha discursiva, mas com outra fardagem. Por isso impôs aberrações como o rançoso exame da quarta classe que, na Europa, só existe na ilha de Malta. Ou melhor, impôs três exames nos primeiros nove anos de escolaridade e dividiu no 2º ciclo os que podem continuar e os que, por via do ensino vocacional, ficarão para trás. Já o melhor sistema de ensino europeu, o finlandês, não só é completamente estadual e gratuito, como prescinde de qualquer exame que possa reprovar...Exame da quarta classe. A vida onírica do Ministro está povoada de professores no estrado com palmatórias tipo menina dos cinco olhos, orelhas de burro e cânticos do hino nacional. Só falta o gótico. Medo.

E esta casa dos horrores não fica por aqui. Crato juntou o pior de três mundos. Este bafio conservadorista, uma tendência pirómana e o neo-liberalismo sem freio. De facto, o Ministro arde sem combustível. Talvez seja porque não consegue estar afastado dos holofotes, talvez seja porque se julga a Thatcher não dos mineiros mas dos professores: assim foi com o braço de ferro que terminou com a greve dos professores aos exames no Verão e agora com o ridículo (v)exame que o Ministro procurou impor e que, no início de 2014, se virará contra o próprio. Essa prova aos professores, que já são avaliados em vários momentos do seu percurso profissional, é outra idiossincrasia cratense – na UE só existe algo semelhante em Espanha. Mas, ainda ardia esse incêndio e logo o Ministro decidiu atear outro braseiro, atacando a qualidade das escolas superiores de educação. O senhor não se aguenta. Insinuando que os docentes são incapazes porque a formação é deficiente, mesmo que a Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior e outras entidades internacionais como a OCDE validem sistematicamente a sua qualidade, Crato conseguiu que mais um grupo social exija a sua demissão. Porém, como dizia Sófocles não há pior inimigo que um mau conselho. Realmente, Crato tem um conhecimento sobre educação muito insuficiente e pior assessoria. Por mais adversários que arranje- e já colecionou muitos- é esse o mais perigoso.
Já o neo-liberalismo em roda livre que acaricia só dá más notas. O ministro declarou que o PISA é o "único instrumento viável para avaliação do nosso sistema". Pois esse programa recentemente constatou que a Suécia (país que no virar do século XIX registava 100% de escolarização), piora os seus resultados desde 2000, quando iniciou a reforma musa de Crato, nomeadamente com o cheque ensino. Os alunos suecos estão agora abaixo dos portugueses que evoluíram nas suas competências em Matemática, Leitura e Ciências notavelmente desde então, ficando a par dos franceses ou noruegueses. Além disso, são dos que mais respeitam os professores e a escola pública tem sido fundamental no combate às desigualdades. Ao contrário do que sucede na Suécia.
Porém, sem qualquer fundamentação científica, sociológica ou sequer económica, Crato insiste não só no xeque mate à escola pública, implodindo-a, como no cheque ensino. O argumento da liberdade de escolha é uma balela. A liberdade das famílias escolherem a escola que pretendem (como se eclipsassem os constrangimentos económicos, sociais, geográficos) é, na verdade, a liberdade dos colégios de escolherem os seus alunos conforme o pedigree. Ou alguém acredita que o Colégio do Rosário vai aceitar crianças da Cova da Moura?
Vejamos. O ensino privado tem, em alguns casos (só alguns, ao contrário da propaganda dos rankings) resultados melhores porque faz uma concorrência desleal. Seleciona alunos, por castas, com apoio escolar em casa e explicações, transporte à porta e instalações de primeira. Com o cheque ensino os colégios abrirão os portões a todos? Claro que não - esse cheque não cobrirá todas as despesas dos privados e estes continuarão a deixar de fora quem tem necessidades educativas especiais ou pertence a famílias desfavorecidas. Fica o apartheid. Porque para Crato e a sua direita canibal, filho do fabril sentado ao lado do rebento do administrador, oh não, que péssimo.
Eis Crato e o seu rigor matemático: afinal tudo servia apenas para a negociata. O Estado pagará para que o ensino privado floresça. Não há dinheiro? Para isto há. E isso não se perdoa. Não se perdoa nunca. A degradação do ensino público representa a perda, para milhares de crianças, do direito a aprender, um direito fundamental. Representa também a aniquilação da prioridade da escola pública- a garantia da igualdade de oportunidades. Significa a guetização de muitos menores, o fecho definitivo e irreversível de um futuro, de uma esperança. Da possibilidade, do alentar que  “um dia....” Rua com o anti-mérito-Crato. E sem nunca esquecer. Jamais.

Por joana amaral dias
Publicado no Correio da Manhã.

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